No dia primeiro de fevereiro de 2021, a comunidade internacional foi surpreendida com um rápido e sorrateiro golpe de Estado pelas próprias forças armadas de Myanmar contra a Conselheira de Estado, Aung San Suu Kyi. Sem nenhum disparo ou confronto, os militares tomaram o poder do país e prenderam Suu Kyi juntamente com centenas de líderes democráticos do país. O caso de Myanmar é curioso, uma vez que se trata de um país que funciona como uma “quase democracia”. O ocorrido representa crises contemporâneas no sistema de nações democráticas e pode nos ajudar a compreender tendências que estão em curso em outras nações que, mais recentemente, caminhavam para uma democratização.
Entendendo o golpe de Estado
A história do Myanmar é composta da dualidade entre momentos de avanços democráticos e ditatoriais desde 1948. Todavia, a ala militar corresponde a instituição de maior força no país. Suu Kyi surge justamente como uma liderança democrática nesse contexto durante os anos 80, sofrendo forte repressão dos militares ao longo da década e, consequentemente, vindo a ser presa em 1989 – lhe rendendo um Nobel da Paz em 1991. Por pressões internacionais, os militares foram gradativamente realizando uma transição para um regime semidemocrático, uma vez que estes ainda teriam controle de 25% dos assentos do legislativo nacional – sendo necessário 75% do total de legisladores para que fossem realizadas emendas na nova constituição elaborada pelos militares.
Todavia, com a crescente popularidade de Suu Kyi e de seu partido, as primeiras eleições livres realizadas no país em 2015 permitiram que os militares perdessem controle do poder legislativo e auxiliaram na ascensão de liderança política de Suu Kyi no país. A relação da nova líder com os militares nacionais não foi conturbada de início, justamente por defender a repressão dos militares com a minoria muçulmana Rohingya no país. Em 2020, frente as eleições nacionais e a pressão de Suu Kyi para que fossem realizadas alterações constitucionais que limitassem ainda mais o poder dos militares, essa classe sofreu ainda maiores derrotas nas urnas, resultando em um grave descontentamento dos militares que viriam a alegar fraudes eleitorais e categorizariam as eleições como ilegítimas. Logo, com a retomada das atividades do legislativo do país na primeira semana de fevereiro, os militares iniciaram a intervenção no país e concretizaram um golpe de Estado, causando revolta e protestos populares. Nesse sentido, o golpe militar ocorreu como uma forma de as forças armadas impedirem um avanço do processo democrático e poder renegociar, em uma posição de poder, uma nova constituição nacional menos aberta.
O golpe militar nessa nação é alarmante justamente pela forma repentina, rápida e eficaz na qual um processo de redemocratização de quase uma década foi praticamente anulado. A comunidade internacional, como esperado condenou o ocorrido no país, com ameaças dos Estados Unidos em retomar as sanções econômicas sobre a nação asiática. Todavia, a percepção atual é de que a situação do Myanmar estaria jogada à sorte, já que a recusa da China em aprovar uma condenação formal por parte do Conselho de Segurança da ONU demonstra uma sinalização chinesa de que nações ocidentais deverão permanecer distantes dos assuntos internos desse país. Além disso, a atual crise pandêmica que diversas nações desenvolvidas enfrentam acabam por privilegiar o âmbito interno do que o internacional. No caso dos Estados Unidos, frente a difícil tarefa de Biden em reunificar o país e consolidar um plano de recuperação econômica, não é esperado que o novo presidente norte-americano despenda esforços para solucionar uma crise de uma nação asiática nos primeiros meses de seu mandato.
Entre a democracia e o autoritarismo
A experiência democrática no Myanmar, apesar de recente, pode nos ajudar a compreender os riscos contemporâneos que as democracias sofrem atualmente. A Polônia, por exemplo, primeiro país da antiga União Soviética a se proclamar como uma democracia, hoje se apresenta como a primeira nação da União Europeia a despontar para um autoritarismo. Com o gradativo controle do executivo sobre a Suprema Corte do país, diversas legislações estão sendo revertidas sem a necessidade de participação do legislativo do país. Nesse sentido, a democracia pode ser minada gradativamente sob pretextos legais. No caso de Myanmar, o controle militar sobre o país nunca deixou de se fazer presente após o processo de democratização. Os acontecimentos recentes nos Estados Unidos, por outro lado, demonstraram a força das instituições democráticas do país, resistindo a pressões populares de reverter o resultado das últimas eleições. Esse últimos acontecimentos devem ser observados pelo Brasil com muita cautela, uma vez que elementos de deslegitimação do devido processo democrático se fazem presentes em nosso país desde as eleições de 2018: acusações de fraudes nas urnas eletrônicas, descrença massiva na mídia, deslegitimação de adversários políticos e a constante reafirmação de que liberdades do povo brasileiro somente podem ser resguardadas a partir de uma liderança patriótica são alguns dos elementos que devem preocupar o país para o cenário eleitoral em 2022. Longe de ter sido um exemplo de redemocratização moderna, o ocorrido no Myanmar demonstra que um processo de redemocratização em uma nação não deve se dar de forma gradativa e com base em “concessões” do lado “mais forte”. Caso contrário, as regras do jogo podem ser reescritas pelos que detém maior força.